Entre o silêncio e a afirmação: reflexões sobre identidade, gênero e autenticidade – O armário como metáfora social e clínica
“Sair do armário” é uma expressão que parece simples, quase cotidiana, mas carrega em si um campo de tensões — entre liberdade e controle, entre o ser e o caber.
Na clínica e na vida, observo que esse processo, tão celebrado como sinônimo de autenticidade, muitas vezes se revela também como uma nova forma de aprisionamento.
Afinal, de que adianta sair do armário se, do lado de fora, ainda há paredes invisíveis moldando o que podemos ser?
Judith Butler (2003) nos lembra que o reconhecimento social depende da inteligibilidade — só é reconhecido aquele que se apresenta em termos que a norma compreende.
Assim, mesmo em ambientes supostamente inclusivos, pessoas LGBTQIAP+ acabam regulando seus gestos, modos de falar, roupas e afetos para caber no que é tolerável.
Essa exigência de performance revela que o armário não é apenas um espaço físico ou psicológico: ele é um dispositivo social que define o que pode ser dito, vivido e sentido.
Entre a dor e o reconhecimento
Minha reflexão nasce de uma experiência pessoal. Sou um homem cis gay, e por muitos anos vivi a tensão entre o medo de ser quem eu era e o desejo de existir com plenitude.
Cresci ouvindo que “ser gay” era errado, pecado ou motivo de vergonha. Com o tempo, percebi que o sofrimento não vinha da minha identidade, mas da violência simbólica que a sociedade projeta sobre ela.
A religião, a família, o trabalho — todos esses campos são atravessados por discursos que buscam regular o corpo e o desejo.
Michel Foucault (2012) nos lembra que o poder não apenas reprime; ele produz subjetividades.
Assim, quando um sujeito LGBTQIAP+ “sai do armário”, não está apenas revelando uma verdade íntima, mas negociando sua existência dentro de um regime que dita como essa verdade deve aparecer.
O corpo como território de resistência
Durante muito tempo, tentei neutralizar traços de mim que pudessem ser lidos como “errados”. Aprendi a esconder gestos, suavizar a voz, controlar o riso.
Hoje compreendo que essa tentativa de “normalidade” não era liberdade, mas gestão da diferença — uma forma sofisticada de controle social.
É nesse ponto que a clínica se torna espaço político: escutar o sofrimento de quem vive essas tensões é também escutar os efeitos do poder sobre o corpo e sobre o desejo.
Cada narrativa traz a marca do esforço por autenticidade, mas também da dor de ter que se moldar para ser aceito.
A clínica como espaço de reconstrução
Na Gestalt-terapia e na Psicologia Social Crítica, compreendemos o sujeito como um ser em processo, sempre em metamorfose — conceito que Antônio Ciampa (1987) chama de identidade-metamorfose.
Ninguém “é” de forma fixa.
Cada encontro, cada vínculo e cada reconhecimento (ou sua ausência) nos transforma.
Por isso, penso o “sair do armário” não como um evento único, mas como um processo contínuo de reinvenção.
A cada nova relação, revisito a mim mesmo. A cada experiência de escuta — seja na clínica, na família ou no trabalho — descubro novas formas de estar no mundo.
Quando o armário é corporativo
No mundo corporativo, esse tema ganha contornos específicos. As empresas falam sobre diversidade, mas muitas vezes esperam comportamentos padronizados.
O “gay palatável”, a “lésbica discreta”, o “corpo que não incomoda”.
Ser autêntico no trabalho ainda é um ato político.
E a psicologia, especialmente a social e a clínica, tem um papel fundamental nesse diálogo: questionar as normas que adoecem e promover espaços onde a diferença não seja apenas aceita, mas celebrada.
Entre o silêncio e a afirmação
O silêncio pode ser uma forma de sobrevivência, mas a afirmação é uma forma de existência.
Entre um e outro, há um campo fértil de descobertas — o espaço onde o sofrimento encontra palavra e se transforma em criação.
Acredito que essa é a beleza da clínica: acompanhar o sujeito em sua travessia, ajudá-lo a reconhecer que o que antes parecia fraqueza pode ser justamente o lugar da força.
Para concluir
Falar sobre identidade e gênero é falar sobre poder, desejo e reconhecimento.
E mais do que isso: é falar sobre a coragem de existir.
Cada pessoa LGBTQIAP+ que decide viver sua verdade, mesmo em meio a normas que a negam, está redesenhando o mundo — e convidando todos nós a sair dos nossos próprios armários.
💬 Autor: Francisco Bruno Rufino da Costa
Psicólogo Clínico | Gestalt-terapeuta em formação | Especialista em Psicologia Clínica pela PUCRS
📍 São Paulo – 2025